No Brasil, particularmente nos dias atuais, o tema da inclusão escolar tem estado presente nos estudos, debates e proposições de professores, pesquisadores, gestores, pais e alunos, direta ou indiretamente, envolvidos com a educação especial. Esse tema, em última instância, nos remete à análise de como vem se concretizando o direito à educação em nossa realidade.
O sentido da educação especial tem sido, muitas vezes, distorcido de modo que ela seja situada como mero mecanismo de discriminação das camadas populares sob a rotulação de problemas de aprendizagem e consequente segregação do meio escolar regular. Em razão disso, entendemos ser oportuno resgatar o seu significado:
“Educação Especial é um conjunto de recursos e serviços educacionais especiais organizados para apoiar, suplementar e, em alguns casos, substituir os serviços educacionais comuns, para garantir a educação formal dos educandos que apresentam necessidades educacionais muito diferentes das da maioria das crianças e jovens” (Mazzotta, 1989, p.39). Para melhor compreensão dos termos dessa definição, particularmente para aqueles que têm se mantido no plano das discussões teóricas sobre essa área, cabe uma breve exposição sobre sua significação no sistema escolar.
“O apoio e a suplementação são auxílios educacionais especiais proporcionados no contexto da escola comum ou regular aos alunos com necessidades educacionais especiais, na classe comum”.
APOIO: ocorre quando um professor especializado orienta a equipe da escola e o professor da classe comum, além de prestar atendimento ao aluno auxiliando-o em suas necessidades educacionais especiais para seu melhor acompanhamento do currículo escolar comum e da programação de sua classe. No atendimento ao aluno, atua tendo como referência os conteúdos curriculares e/ou a preparação de materiais didáticos fazendo uso de métodos e recursos especiais. Tal professor será um professor de recursos, podendo ser um consultor, um professor itinerante ou um professor de sala de recursos.
SUPLEMENTAÇÃO: ocorre quando um professor especializado orienta a equipe da escola, os professores das classes comuns e presta atendimento ao aluno mediante desenvolvimento de atividades e conteúdos curriculares específicos, além daqueles destinados a todos os alunos de sua classe, de modo a favorecer seu desenvolvimento e aprendizagem e garantir sua escolarização no contexto do ensino regular. São exemplos de conteúdos e atividades específicos o braile, técnicas de comunicação, atividades da vida diária. Para prestar tal auxílio especial, o professor especializado poderá ser itinerante, de sala de recursos ou de classe especial.
SUBSTITUIÇÃO: caracteriza-se como um serviço educacional especial que se torna necessário quando a organização, o currículo, os métodos e os recursos da escola comum e da classe comum não são suficientes ou apropriados para o atendimento das necessidades educacionais dos alunos. Constituem serviços educacionais especiais para substituir a educação comum: a classe especial com organização curricular específica em que o aluno a freqüente com exclusividade, ou seja, em todo o período em que está na escola comum; a escola especial, com organização administrativa e didática específica para determinados grupos de alunos com necessidades educacionais especiais, além de outros menos usuais” (Mazzotta, 1997, pp.15-6).
Se desmistificada do papel de vilã das camadas menos favorecidas da população escolar, ela poderá, pois, ser interpretada no conjunto das alternativas educacionais escolares, que tanto podem ser qualificadas quanto desqualificadas em algum ou nos diversos níveis da administração educacional e organização escolar.
Das considerações até aqui expostas podem-se depreender princípios que devem nortear políticas educacionais em direção à constituição da escola enquanto espaço público, para que se viabilize o direito à educação para todos.
A decorrência do sentido de educação especial aqui explorado é que o princípio da inclusão ou não segregação deve ser o norteador da organização da educação escolar. No entanto, até mesmo para sua concretização, podem se fazer necessários, para alguns alunos, recursos ou serviços especiais. A sua não disponibilização pode se constituir, no limite, em uma ação muito mais discriminatória do que a sua garantia. Ainda, para que se concretize a escola enquanto espaço público é condição que as políticas em curso apoiem e estimulem relações de cooperação intra e interescolas, visando à inclusão.
Todavia, em um momento em que se assiste à reforma do Estado assentada em um pressuposto ideológico de que o mercado é o agente principal de promoção de bem-estar social, tem-se, como uma das consequências, a restrição da noção de direitos sociais e a ênfase na noção de serviços sociais, sendo necessário examinar o movimento de redefinição do papel do Estado, do Estado de bem-estar social para o Estado mínimo, para uma compreensão das iniciativas localizadas no âmbito educacional.
No Brasil, apesar da tendência à ampliação e à universalização de algumas políticas setoriais, não se concretizou o Estado de bem-estar social. Como diz Weffort:
“Se se entende por welfare State, ou Estado de bem-estar social, o conjunto de direitos e dos benefícios sociais que o Estado democrático assegura aos cidadãos nas sociedades modernas, creio que não apenas o Brasil não o superou como está longe de atingi-lo. Welfare State é isso: educação, saúde, previdência, transporte público, seguro-desemprego, garantia de alimentação etc. de boa qualidade e para todos. No caso do Brasil – onde deveríamos incluir também o acesso à terra, o que implica uma reforma agrária -, o que temos é um arremedo disso tudo” (Weffort, 1989, p.3).
Assim como o Brasil, outros países “em desenvolvimento” nem sequer tiveram como realidade o Estado de bem-estar social. No entanto, também a esses se irradiaram as teses neoliberais de defesa do Estado mínimo, que se pautam pela perspectiva de “um Estado mais enxuto e mais eficiente, que prestará um serviço de melhor qualidade aos cidadãos” (Bresser Pereira, 1998, p.341). A referência a esse movimento de redefinição do papel do Estado que se realiza em âmbito mundial é importante não para aceitá-lo como algo inexorável, mas para possibilitar a explicitação de princípios que têm norteado a implementação das políticas educacionais no Brasil, pelo governo federal e por governos estaduais e municipais. Levando em conta os limites deste ensaio, vamos nos deter em considerações relativas a um novo modelo de gestão assumido pelo Estado, que transpõe a lógica da gestão privada para a educação pública com seus reflexos nos processos de trabalho da educação básica, em que as iniciativas de avaliação educacional têm centralidade, constituindo o elemento capaz de induzir a competitividade e, em consequência, a qualidade, tal como no mercado. Conforme diz Guareschi, o “pressuposto do liberalismo, ou neoliberalismo, hegemônico em nossos dias, tanto no plano econômico, como no filosófico e social, é que o progresso e o desenvolvimento só são possíveis através da competitividade. É o confronto, o choque entre interesses diferentes ou contrários, que vai fazer com que as pessoas lutem, trabalhem, se esforcem para conseguir melhorar seu bem-estar, sua qualidade de vida, sua ascensão econômica” (1999, p.146).
Tal pressuposto, transportado para o campo educacional, possibilita-nos compreender (não necessariamente aceitar) o papel nuclear que vem sendo atribuído, pelo poder público, à avaliação, sendo esta entendida como instrumento capaz de informar sobre a eficiência e produtividade dos serviços educacionais, ou seja, indaga-se sobre os produtos educacionais e as condições e custos de sua produção, ficando sem lugar as questões relativas às finalidades e aos beneficiários dessa produção.
A avaliação tem sido assumida, nos planos e propostas governamentais, como um mecanismo capaz de promover a melhoria da qualidade e conduzida sob o compromisso de se dar visibilidade e controle público aos produtos ou resultados educacionais, estimulando-se a competição, ao disponibilizar aos usuários elementos para escolha dos serviços ou pressão sobre as instituições ofertantes. Entre as implicações da adoção de um ethos competitivo na prestação dos serviços públicos, Abrucio comenta que “o modelo de competição pode levar ao que a ciência política denomina jogo de soma zero. Isto é, o equipamento social vencedor (aprovado pela população) no começo do jogo ‘leva tudo’ (takes all), ganhando todos os incentivos para continuar sendo o melhor. Já a unidade de serviço público que obtiver as piores ‘notas’ dos consumidores ‘perde tudo’, o que resultará indiretamente na aplicação de incentivos para que esse equipamento social continue sendo o pior. Nesse jogo, no entanto, o maior perdedor é o princípio da equidade na prestação dos serviços públicos (Pollitt, 1990, p.125), conferindo a alguns consumidores a possibilidade de ser mais cidadão do que outros” (1999, p.189).
Nos moldes em que vem sendo conduzida, a avaliação tem potencial para concretizar a transformação do papel do Estado na gestão da educação pública, Estado que tem assumido como funções prioritárias legislar e avaliar, como expressão de um movimento mais amplo de concretização de um Estado mais enxuto e mais eficiente, que prestará um serviço de melhor qualidade, para alguns cidadãos.
Comentando esse movimento, Afonso explora a expressão “Estado avaliador”, que começa a ser utilizada a partir da década de 80, sobretudo por governos neoconservadores e neoliberais de países centrais. Diz o autor que “para diferentes países, esta expressão quer significar, em sentido amplo, que o Estado adotou um ethos competitivo, decalcado no que tem vindo a ser designado por neodarwinismo social, passando a admitir a lógica do mercado com a importação para o domínio público de modelos de gestão privada cuja ênfase é posta nos resultados ou produtos dos sistemas educativos. Como assinala G. Walford (1990), esta ideologia da privatização, ao enaltecer o capitalismo de livre mercado, conduziu a alterações e mudanças fundamentais no papel do Estado, tanto no nível local, como no nível nacional. Neste sentido, por exemplo, diminuir as despesas públicas exigiu não só a adopção de uma cultura gestionária (ou gerencialista) no sector público, como também induziu a criação de mecanismos de controle e responsabilização mais sofisticados. A avaliação aparece assim como um pré-requisito para que seja possível a implementação desses mecanismos” (Afonso, 1998, p.l 13).
No Brasil, até o momento, no âmbito da educação básica, não se tem tido a prática de associar aos resultados da avaliação a premiação ou punição. Têm-se divulgado classificações de unidades federadas ou de escolas, elaboradas a partir de resultados obtidos por alunos em testes de rendimento escolar, as quais, no entanto, ao que se sabe, não se vêm traduzindo explicitamente em prêmio ou castigo.
Entretanto, se se considerar que essa é uma prática vigente em países nos quais os governantes brasileiros têm se inspirado para delineamento dos sistema de avaliação, como é o caso da Inglaterra, bem como as decorrências da avaliação dos programas de pós-graduação já vigentes em nosso país, será preciso maior atenção a essas iniciativas.
Políticas educacionais formuladas e implementadas sob os auspícios da classificação e seleção incorporam, consequentemente, a exclusão, como inerente aos seus resultados, o que é incompatível com o direito de todos à educação.
A própria luta popular para fazer valer esse direito tende a se fragilizar, prevalecendo à busca por conquistas individuais. É ilustrativo desse movimento o comentário feito por Whitty (1998) sobre as reações à reforma educacional na Inglaterra e no País de Gales: “…as escolas, professores e pais enfrentam-se como concorrentes no mercado, e resta-lhes pouco espaço em que possam explorar interesses comuns e empreender ações coletivas”.
Nesse quadro é que se situa nosso alerta sobre o paradoxo a que se assiste hoje no âmbito da educação especial:
• de um lado, o estímulo e fortalecimento de iniciativas de atendimento escolar de alunos deficientes nas classes comuns de ensino, sem que sejam acompanhadas de investimentos nos sistemas de ensino que dêem suporte a tal encaminhamento, ou, pior ainda, em alguns casos tem-se a desativação de serviços e auxílios de educação especial em nome da inclusão;
• de outro, a utilização, cada vez mais intensa, nos sistemas escolares, da avaliação, pautada por um modelo gerador de competição.
A questão que se apresenta é: em nome da inclusão, será que não se está, na realidade, inviabilizando a concretização do direito à educação escolar para parcela de alunos deficientes físicos, sensoriais ou mentais?
É oportuno mencionar algumas conclusões de estudos que, embora tenham sido desenvolvidos em realidades que não a brasileira, trazem uma denúncia que não se pode ignorar, ou seja, do potencial de exclusão inerente às práticas de avaliação de sistema, tal como vêm sendo delineadas no Brasil. Estes estudos foram mencionados por Whitty ainda em (1998), ao alertar sobre o potencial das iniciativas de avaliação de provocarem a seleção, pelas escolas, dos alunos que tenham maior probabilidade de serem bem-sucedidos nos testes, observando que entre a clientela menos desejada pelas escolas encontram-se as crianças com necessidades educacionais especiais.
A expectativa é no sentido de que a educação inclusiva se concretize não só nos debates políticos, acadêmicos, profissionais, mas contando com uma clarificação de diretrizes e provisão de meios reais para a ação educacional escolar abrangente, integradora, inclusiva, em todos os níveis educacionais.
Texto > Prof. Marcos L Souza
Marcos Leonardo de Souza é Educador e Escritor. Licenciado em Pedagogia, História e Música, com Pós-Graduação Lato Senso em Psicopedagogia, Alfabetização e Letramento, Educação Lúdica, Educação Musical, Educação Infantil, atuando nas áreas de consultoria, assessoria pedagógica, treinamentos, oficinas e palestras. Mestre em Educação.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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